Pode o juiz determinar que o acusado deixe de beber?

23.08.2021.

A 3a Turma Recursal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no julgamento da Apelação Crimnal nº 0005041-26.2016.8.24.0039/SC, em voto divergente do Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa, deu provimento ao recurso do condenado que, na aplicação do Sursis, teve imposta a condição especial e genérica de proibição de “ingerir bebida alcóolica”. A decisão sublinha a necessidade de obsrvância da taxatividade penal e que a postura “paternalista estatal” não deve prevalecer. Leia e Ementa e o Voto abaixo:

EMENTA

APLICAÇÃO DA PENA. SURSIS. CONDIÇÃO ESPECIAL. CP, ART. 79. PROIBIÇÃO GENÉRICA DE “INGERIR BEBIDA ALCÓOLICA”. ILEGALIDADE. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DA SECULARIZAÇÃO. VEDAÇÃO DEMOCRÁTICA DE CRIAÇÃO DE SANÇÕES NÃO PREVISTAS EM LEI. É ILEGÍTIMO AO ESTADO IMPOR LIMITAÇÕES À AUTONOMIA DO SUJEITO SEM PREVISÃO LEGAL POR MEIO DA CRIAÇÃO DE RESTRIÇÕES À LIBERDADE MAIS GRAVES DO QUE A SANÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO PARA EXCLUIR A CONDIÇÃO ESPECIAL.

Se a aplicação da pena está vinculada ao princípio da legalidade, dentre as expressamente previstas em lei, é inválido o entendimento de que a abertura do art. 79, do CP, confere ao julgador “discricionariedade” para “criar” condições limitadoras à liberdade do agente, para além do democraticamente aceito e previsto expressamente em lei (taxatividade). A cisão entre Direito e Moral (Princípio da Secularização) impede que iniciativas moralizantes possam se valer de espaços de poder para impor, por meio de decisões judiciais, a vedação ao exercício de direitos que podem fazer mal ao agente, isto é, mostra-se vedada a proibição genérica do uso de drogas, de álcool, de comida, de açúcar, enfim, de qualquer ação que esteja no espectro da liberdade do agente. Do contrário, teríamos o protagonismo da arbitrariedade judicial, criando-se sanções mais gravosas do que as previstas em lei (taxatividade penal).

“O direito penal do Estado liberal e democrático de direito deve-se pautar pelos princípios tradicionais, entre eles o da legalidade, da subsidiariedade, da lesividade, da fragmentariedade e da proporcionalidade. A estes princípios deve ser adicionado o princípio da autonomia individual, segundo o qual as proibições penais devem respeitar ao máximo a liberdade do sujeito, pois presume-se que cada um sabe o que é melhor para si próprio. […] Quando o Estado faz uso do ordenamento jurídico para interferir na liberdade individual, para promover um bem ou evitar um mal, contra a vontade da pessoa, por entender que esta desconhece o melhor para si própria, temos o paternalismo. Entende-se por paternalismo a interferência na liberdade de alguém, contrariando a vontade, para seu próprio bem. O Estado pode promover atos paternalistas por meio do direito, com proibições ou mandamentos. O que interessa ao trabalho é uma das espécies de paternalismo, o jurídico-penal, sustentado por normas de proibição com o fim de proteger interesses. […] A construção de uma teoria paternalista legítima do direito penal passa, necessariamente, pelos conceitos de autonomia e responsabilidade. O sujeito autônomo é aquele que sabe discernir as coisas e pode agir conforme sua vontade consciente. A autonomia a ser preservada, no entanto, não é irrestrita; esgota-se quando interferir na autonomia de terceiros. Na ausência da capacidade de discernimento ou da livre manifestação da vontade, por qualquer tipo de vulnerabilidade, não se aceita um comportamento como autônomo e, assim, a intervenção paternalista está legitimada”. (Lição de João Paulo Orsini Martinelli em “Paternalismo Jurídico-Penal”. São Paulo: Liber Ars, 2015)

ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, 3ª Turma Recursal – Florianópolis (capital) decidiu, por maioria, vencido o relator, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.”, nos termos do relatório, votos e notas de julgamento que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Florianópolis, 09 de junho de 2021.

VOTO PREVALECENTE

VOTO DIVERGENTE

Trata-se de Recurso Inominado interposto por M. L. G. contra sentença que julgou procedente em parte a denúncia ofertada pelo Ministério Público, insurgindo-se especificamente sobre a condição imposta no sursis de “proibição de ingerir bebida alcoólica”.

O Ministério Público defendeu a manutenção da decisão, em ambas as instâncias.

1. ADMISSIBILIDADE: conheço do recurso, porque próprio e tempestivo.

2. OBJETO DO RECURSO: Exclusão da “proibição de ingerir bebida alcoólica”.

3. FUNDAMENTAÇÃO:

O art. 79 do Código Penal (A sentença poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do condenado) ao autorizar a fixação de outras condições em face da concessão do sursis, não conferiu ao julgador o direito de impor restrições em descompasso com o contexto do Caso Penal, atendida, ademais, a proporcionalidade da condição e ao pressuposto “agnóstico da pena” (ZAFFARRONI, Eugénio Raul. O inimigo no Direito Penal. Trd. Sérgio Lamarão. Rio de Jaineiro: Revan, 2017; CARVALHO, Salo de. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal BrasileiroSão Paulo: Saraiva, 2013; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen; AMARAL, Augusto Jobim do. Criminologia e(m) crítica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013).

Se a aplicação da pena está vinculada ao princípio da legalidade, dentre as expressamente previstas em lei, é inválido o entendimento de que a abertura do art. 79, do CP, confere ao julgador “discricionariedade” para “criar” condições limitadoras da liberdade do agente, para além do democraticamente aceito. A cisão entre Direito e Moral (Princípio da Secularização) impede que iniciativas moralizantes possam se valer de espaços de poder para impor, por meio de decisões judiciais, a vedação ao exercício de direitos que podem fazer mal ao agente, isto é, mostra-se vedada a proibição genérica do uso de drogas, de álcool, de comida, de açucar, enfim, de qualquer ação que esteja no espectro da liberdade do agente. Do contrário, teríamos o protagnismo da arbitrariedade judicial, criando-se restrições não previstas em lei (taxtatividade penal).

Há posição parcialmente contrária, não vinculante, do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus 516.159, relatada pelo Min. Rogério Schietti Cruz:

“Nota-se que as condições determinadas pelo Magistrado de origem, principalmente no que concerne à proibição de consumo de álcool, estão devidamente fundamentadas e em conformidade com a previsão estabelecida no art. 79 do Código Repressivo, uma vez que em observância de tal dispositivo, a sentença poderá especificar outras exigências a que ficará subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do condenado. Segundo trecho acima, é notória a situação peculiar do agressor quando ingere álcool, o que faz da medida de proibição de consumo de bebida alcoólica extremante adequada ao caso em questão”.

Entretanto, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o acusado/condenado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações ou cumprimento da decisão, não pode servir de álibi para restrições ao direito de ir e vir ou ao moralismo antidemocrático. A restrição da liberdade de locomoção e/ou de frequência deve estar vinculada (nexo de causalidade) ao crime imputado, ou seja, a condição não deve servir para moralismo ou bom-mocismo, em que o Juiz obriga o acusado a não frequentar “bares, zonas e locais de reputação duvidosa”. A determinação deve guardar correlação/nexo com o fato imputado e não pode ser universal, além de constar expressamente da imputação. Distingue-se, ademais, acesso de frequência, já que o acesso é a vedação de qualquer ida ao local determinado, enquanto a frequência autoriza, eventualmente, o acesso, mas impede que o acusado repetidamente reitere a ida, ou seja, que tenha habitualidade. Dentre as condições especiais, desde que debatidas e submetidas ao contraditório, pode estar a proibição de acesso ou de frequência a determinados lugares vinculados ao Caso Penal. Por isso, deve guardar parametricidade com a narrativa da denúncia (Evento 28) que, em nenhum momento, refere-se ao fator “álcool”.

João Paulo Orsini Martinelli (Paternalismo Jurídico-Penal. São Paulo: Liber Ars, 2015) explica:

“O direito penal do Estado liberal e democrático de direito deve-se pautar pelos princípios tradicionais, entre eles o da legalidade, da subsidiariedade, da lesividade, da fragmentariedade e da proporcionalidade. A estes princípios deve ser adicionado o princípio da autonomia individual, segundo o qual as proibições penais devem respeitar ao máximo a liberdade do sujeito, pois presume-se que cada um sabe o que é melhor para si próprio. […] Quando o Estado faz uso do ordenamento jurídico para interferir na liberdade individual, para promover um bem ou evitar um mal, contra a vontade da pessoa, por entender que esta desconhece o melhor para si própria, temos o paternalismo. Entende-se por paternalismo a interferência na liberdade de alguém, contrariando a vontade, para seu próprio bem. O Estado pode promover atos paternalistas por meio do direito, com proibições ou mandamentos. O que interessa ao trabalho é uma das espécies de paternalismo, o jurídico-penal, sustentado por normas de proibição com o fim de proteger interesses. […] A construção de uma teoria paternalista legítima do direito penal passa, necessariamente, pelos conceitos de autonomia e responsabilidade. O sujeito autônomo é aquele que sabe discernir as coisas e pode agir conforme sua vontade consciente. A autonomia a ser preservada, no entanto, não é irrestrita; esgota-se quando interferir na autonomia de terceiros. Na ausência da capacidade de discernimento ou da livre manifestação da vontade, por qualquer tipo de vulnerabilidade, não se aceita um comportamento como autônomo e, assim, a intervenção paternalista está legitimada”. 

Aceitar a probição genérica de “consumo de álcool” significaria, na hipótese de manutenção, a prevalência da postura paternalista, desprovida de suporte democrático, justamente por avançar sobre o espaço de liberdade (autonomia privada) do sujeito, sem autorização legal. Por ausência de previsão em lei (Taxatividade Penal), é ilegítimo ao Poder Judiciário impor a proibição genérica e universal ao consumo de álcool. Uma das opções gratuitas para o tratamento do alcoolismo é o “encaminhamento” (jamais a imposição) aos Centros de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (CAPS – AD), em que a demanda (do sujeito) é levada em consideração. A privação de consumo de produto lícito (álcool), por sentença, significaria também e indiretamente, o involuntário tratamento, sequer com indicação médica e/ou psiquiátrica, nos termos da Lei 10.216/2001. Até porque o acusado foi considerado capaz para fins de aplicação da sanção, razão pela qual é contraditório puní-lo por ser capaz e limitar a sua liberdade por ser incapaz de escolher o que for melhor para si (consumir ou não álcool). O potencial invasivo, na hipótese, ainda é mais violento porque limita o direito de o acusado consumir álcool em qualquer contexto e/ou situação.

Deve-se rechaçar qualquer espécie de medida judicial de caráter meramente moral, ainda mais sem previsão legal. Não é função do Magistrado tutelar a integridade física e a saúde de quem está em liberdade, como se fosse o pai cuidando de uma criança. O moralismo, por si só, é insuficiente para legitimar medidas de natureza penal, uma vez que é intrínseco ao Estado Democrático de Direito a necessidade de mínima criação de perigo ao bem tutelado. Ademais, a autolesão não é – nem pode ser – punível no âmbito penal. Enquanto a pessoa tiver autonomia para decidir por seu destino não cabe ao Estado interferir em suas deliberações. Como afirmou John Stuart Mill, em sua célebre obra On Liberty, ninguém sabe o que é melhor a si mesmo do que o próprio indivíduo.

4. DISPOSITIVO: Por tais razões, voto por dar provimento ao recurso interposto para decotar a condição imposta. Sem custas, nem honorários.