Conto do Vigário Acadêmico. O Novo Golpe de Publicação em Revistas Científicas

Deu ruim

O “conto do vigário” é o golpe operado de modo a instrumentalizar a boa-fé do interessado em obter alguma vantagem, associada a figura do estelionato (consulte sobre os “Contos do Vigário” aqui). Envolve o contexto de supostos espertos, lotados de “excesso de confiança” e de oportunistas dissimulados. A junção da necessidade, com a esperteza e a tolice proporciona o cenário ideal para o “matching” da fraude.

Pesquisadores, Professores e Alunos do mundo inteiro são pressionados por publicações em revistas qualificadas, especialmente em A1, consideradas relevantes academicamente. A ausência de publicações pode fechar portas profissionais, causar o desligamento de Professores ou ainda representar a impossibilidade de matrícula em alguns programas de mestrado e de doutorado. Em geral, prevalece a quantidade em detrimento da qualidade, embora o movimento pela qualidade esteja cada vez mais em voga. Por isso, a luta reiterada pela obtenção de aceitação de artigos em revistas especializadas.

E onde há procura, oportunistas se valem da urgência, da necessidade e da ausência de controles robustos para aplicar golpes. É o caso atual.

A fraude é preparada por meio da criação de site, até porque a imensa maioria das revistas está online, com plataforma, em geral, gratuita. O serviço é disponibilizado de modo sério e democrático pelo Public Knowledge Project (PKP) e, no Brasil, pelo Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). Com base em plataformas similares, criam-se domínios falsos (fakes), em que novas revistas são batizadas ou ainda se ressuscitam revistas descontinuadas que reaparecem do nada. Melhor dizer que por “milagre do Vigário”.

Construída a aparência de seriedade de um lado e, por outro, com pesquisadores ávidos por oportunidades de publicação, basta a obtenção de base de dados de pesquisadores interessados, os potenciais alvos dos “vigaristas”.

O contato opera-se pelo encaminhamento de email aparentemente formal, em que o pesquisador por vezes é chamado pelo nome, seguido de texto genérico destacando a qualidade de sua produção científica, às vezes com indicação de alguma publicação (facilmente retirada do lattes ou equivalente), com o convite, mediante pequena retribuição de “taxa” ou de “valores”, sem necessidade de análise por pares, de publicação imediata. A difusão também pode ser orgânica, diante do sucesso e facilidade de publicação.

Nem toda a revista que cobra “taxa” é oportunista. O que se destaca é o possível uso dos espaços editorais para o fim de obtenção de ganhos espúrios. Cuidado para não cair no “Golpe do Vigário Acadêmico”.

O fenômeno foi estudado recentemente e recebeu artigo específico sobre a questão na Revista da FAPESP, com a reprodução, na íntegra, na forma indicada na fonte:

Artigo na Íntegra:


spxChrome /getty images


Pesquisadora da Universidade Livre de Berlim, a economista russa Anna Abalkina está investigando o alcance e o impacto de um tipo cada vez mais sofisticado de fraude: o sequestro de revistas científicas. Trata-se de um golpe no qual impostores apropriam-se de títulos de periódicos legítimos e passam a explorá-los em sites na internet, em geral oferecendo a chance de publicação de artigos sem a necessidade de uma avaliação criteriosa, apenas em troca de dinheiro. O embuste não é uma novidade. Os primeiros casos têm mais de uma década e há listas que compilam dezenas de revistas atingidas pelo golpe, que são usadas para alertar autores incautos.
Abalkina reuniu dados mostrando que há uma nova onda de sequestro de periódicos cujos efeitos são pervasivos a ponto de o conteúdo fraudulento de títulos clonados ser considerado como legítimo em bases de dados de publicações científicas. Em um estudo divulgado em junho na plataforma ResearchGate, e ainda não revisado por pares, a economista compilou uma relação de 17 revistas que foram alvo desse tipo de fraude no passado recente e tiveram artigos indexados na base Scopus. Vários deles são periódicos antigos, existentes só em versão impressa. Os fraudadores criam um site falso que parece ser o oficial. No preprint, a pesquisadora convida colegas a informar eventuais outros casos e contribuir com seu esforço de investigação.
Ela estudou detidamente um dos casos, o do periódico Annals of the Romanian Society for Cell Biology, da Romênia, que deixou de ser publicado em 2018. Malfeitores criaram um domínio na internet em outubro de 2020 e utilizaram o mesmo registro ISSN. Mas o conselho editorial é fictício. Não se sabe o paradeiro do editor-chefe, Ryon Oelen. A instituição a que ele declara ser afiliado, a Universidade Wageningen, nos Países Baixos, diz que ele não pertence a seu corpo docente. Uma busca na internet associa seu nome a uma outra revista recentemente sequestrada e especializada em engenharia, a Converter. Quem percebeu primeiro a contrafação foi o estudante Dmitry Dubrovsky, que estranhou a publicação em uma revista sobre biologia celular de um artigo sobre a resistência russa à invasão nazista na Segunda Guerra. A versão clonada dos Annals of the Romanian Society for Cell Biology já publicou mais de 5 mil artigos em 2021, cobrando dos autores US$ 200 por paper.
Pesquisadores de três países – Índia, Iraque e Uzbequistão – se destacavam entre os autores do conteúdo adulterado do periódico, o que não foi uma surpresa para Abalkina. Ela analisou um conjunto de manuscritos de revistas clonadas que conseguiram enganar a base Scopus e chegou aos mesmos três países. No caso do Uzbequistão, chamou a atenção o fato de 41% de todos os artigos de autores do país indexados em 2021 na base de dados terem origem fraudulenta.
A plataforma Scopus demorou a perceber a fraude e, inadvertidamente, chegou a indexar artigos publicados no site clonado como se fossem legítimos. Um artigo publicado por pesquisadores paquistaneses na PLOS ONE e outro por chineses no Journal of Supercomputing, da Springer Nature, citaram nas referências bibliográficas papers da revista clonada da Romênia, em uma evidência de que esse tipo de golpe pode ter repercussão na comunicação científica. “A criação de uma lista atualizada regularmente de periódicos sequestrados representa um desafio para a comunidade e a comunicação acadêmicas a fim de evitar que mais autores sejam enganados”, escreveu Abalkina em um texto produzido para o site Retraction Watch.
Identificar um periódico clonado pode ser trabalhoso. Entre os cuidados obrigatórios, destacam-se consultar listas de revistas que foram alvo de sequestro e verificar se o endereço na internet atribuído à publicação corresponde ao informado por bases de dados como a Web of Science ou a Scopus. Mas há outras pistas que ajudam a evitar o engodo.
O cientista da computação Varun Menon, pesquisador de um grupo privado de instituições de ensino superior da Índia, decidiu investigar as características comuns das revistas sequestradas após um colega cair em um golpe. O amigo recebeu um e-mail de uma revista de boa reputação em ciências da Terra convidando-o a submeter manuscritos. O periódico em questão, chamado Jokull, pertence à Sociedade Glaciológica da Islândia e está listado no Journal of Impact Factors (JIF), ferramenta da empresa Clarivate usada para avaliar o número de citações de milhares de periódicos. Não passou pela cabeça do pesquisador que o bem construído site da publicação, ao qual o e-mail remetia, fosse falso.
Depois de analisar os sites clonados, Menon reuniu alguns elementos que ajudam a identificá-los e publicou um artigo sobre o tema na revista Library Hi Tech News. Segundo o cientista da computação, alguns têm arquitetura precária e contêm apenas o espaço para submissão de artigos – esses são relativamente fáceis de identificar. “Outros sites são mais caprichados, mas é possível ficar atento a certos sinais. O pesquisador recomenda, por exemplo, que os autores tentem baixar e analisar artigos já publicados pelo periódico. Revistas sequestradas difundem artigos de péssima qualidade, sem submetê-los a uma revisão por pares genuína, e isso transparece até mesmo na linguagem dos papers, não raro repletas de erros gramaticais ou de digitação. Também é comum que títulos clonados não disponham dos arquivos das publicações originais. Quando alguém tenta fazer um download de um paper antigo, é informado que ele só pode ser fornecido sob demanda, via e-mail.
Outras características são convergentes com a dos periódicos predatórios, aquelas revistas de má qualidade que aceitam difundir qualquer tipo de manuscrito em troca de dinheiro. Publicações sequestradas em geral trabalham com prazos curtíssimos de revisão por pares, que na verdade não é realizada, divulgam o paper apressadamente sem solicitar modificações e são rápidas na cobrança. Outro traço comum é a abrangência exagerada. Alguns títulos são evasivos sobre os temas de interesse e topam publicar artigos em múltiplas áreas, bastando pagar por isso.

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
var img = new Image(); img.src=’https://revistapesquisa.fapesp.br/republicacao_frame?id=398844&referer=’ + window.location.href;